Mato Grosso do Sul, 28 de maio de 2025
Campo Grande/MS
Fuente de datos meteorológicos: clima en Campo Grande a 30 días

Bebê reborn: entre a dor invisível e a controvérsia pública

Quando o afeto simbólico ultrapassa os limites do aceitável e desafia a sociedade, a psicologia e os serviços de saúde mental
O fenômeno, que já ocupa espaço em consultórios de psicologia
O fenômeno, que já ocupa espaço em consultórios de psicologia

Em meio a tantas manifestações do comportamento humano que desafiam os conceitos tradicionais de normalidade, poucas causam tanto espanto quanto a maternidade simbólica de bebês reborn. Essas bonecas hiper-realistas, criadas para imitar com impressionante fidelidade os traços, o peso e a aparência de um recém-nascido, ganharam espaço entre adultos em sua maioria mulheres que lhes atribuem nomes, histórias e cuidados cotidianos. A princípio, tal prática pode parecer inofensiva ou até mesmo artística. Contudo, em determinados contextos, ela assume contornos complexos que suscitam questionamentos legítimos sobre saúde mental, limites do afeto simbólico e as fronteiras entre o cuidado terapêutico e o delírio.

O fenômeno, que já ocupa espaço em consultórios de psicologia, reportagens sensacionalistas e rodas de debate, torna-se ainda mais controverso diante de episódios que revelam a ruptura entre a experiência emocional individual e a convivência em sociedade. Há relatos de mães reborn que exigem atendimento prioritário em filas de bancos, supermercados ou repartições públicas, amparadas pela alegação de que estão acompanhadas de um “bebê”. Em outros casos, profissionais da saúde narram episódios de tentativas de agendamento em Unidades Básicas de Saúde (UBS), onde a boneca é apresentada como paciente ou dependente da usuária, gerando situações de constrangimento, perplexidade e necessidade de intervenção técnica.

Antes de qualquer julgamento, é fundamental compreender que a relação com bebês reborn pode sim ter uso terapêutico legítimo. Em casos de luto perinatal, por exemplo, o contato simbólico com um boneco realista pode ser mediado por psicólogos como uma forma de ressignificar a perda e favorecer a elaboração emocional. Em idosos com demência, a presença de um reborn pode reativar memórias afetivas e estimular a socialização. Em pessoas acometidas por transtornos de apego, os reborns possibilitam o exercício do vínculo afetivo, ainda que de forma simbólica, servindo como preparação para relações interpessoais reais.

A questão torna-se delicada, porém, quando o afeto simbólico evolui para um estado de desconexão com a realidade. Há registros, ainda que isolados, de internações psiquiátricas de mães reborn em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), geralmente decorrentes de quadros clínicos mais severos. Nesses casos, os profissionais de saúde mental relatam episódios de transtornos dissociativos, onde a usuária vive em um universo paralelo em que a boneca é tratada como uma criança real, com direito a prontuário, cartão de vacinação e até solicitação de matrícula escolar.

Os transtornos de apego merecem atenção especial. Desenvolvem-se, na maioria das vezes, quando a pessoa não consegue formar vínculos seguros e saudáveis ao longo da vida, com origem em traumas infantis, negligência, rejeição ou abandono. O bebê reborn, nesse cenário, surge como substituto simbólico de relações afetivas frustradas. Em um primeiro momento, isso pode gerar alívio emocional. Porém, o perigo reside na cristalização desse vínculo simbólico, que pode impedir o surgimento de relações humanas autênticas, reais e saudáveis.

Os transtornos dissociativos, por sua vez, se caracterizam por interrupções na consciência, identidade, memória e percepção. A pessoa afetada pode se desligar da realidade como forma de autoproteção frente a traumas intensos. A presença de um reborn, nesses casos, pode representar uma âncora de fuga, em que a usuária projeta na boneca uma identidade paralela e um mundo alternativo. A dissociação profunda tende a prejudicar a funcionalidade cotidiana, exigindo intervenção psicoterapêutica especializada e, em muitos casos, multidisciplinar.

Nos transtornos de personalidade, em especial o transtorno de personalidade borderline, a relação com o reborn pode expressar a busca por estabilidade emocional em meio à constante flutuação afetiva. Indivíduos com borderline vivenciam sentimentos crônicos de vazio, medo do abandono e impulsividade intensa. O bebê reborn passa a ser um objeto de apego estável, utilizado como tentativa de preencher os vazios emocionais. A psicoterapia focada na regulação emocional e no fortalecimento do senso de identidade é essencial nesses casos.

A depressão, em especial em seus quadros moderados e graves, é marcada por tristeza persistente, perda de interesse, apatia e sentimento de inutilidade. O reborn, para algumas pessoas deprimidas, representa uma responsabilidade simbólica um ser a quem cuidar, algo que rompe a paralisia emocional. Embora isso possa promover algum grau de engajamento com a vida, o risco está em substituir as relações humanas reais por um vínculo inanimado. O tratamento exige, além do acompanhamento psicoterapêutico, uso criterioso de antidepressivos e mudanças graduais na rotina.

No transtorno de ansiedade generalizada (TAG), o reborn pode ser utilizado como objeto de conforto diante do excesso de preocupações e da tensão constante. Sua previsibilidade e aparência reconfortante oferecem sensação de segurança. Entretanto, a dependência desse recurso para enfrentar situações sociais ou rotineiras pode reforçar o evitamento e agravar o isolamento social. A terapia cognitivo-comportamental é altamente eficaz para tratar o TAG, especialmente quando associada a técnicas de relaxamento e reestruturação de crenças disfuncionais.

A tensão entre o direito à subjetividade e os limites do espaço coletivo emerge com força quando essas mães simbólicas demandam reconhecimento institucional do bebê reborn. É nesse ponto que o afeto privado esbarra no funcionamento da sociedade: como lidar com uma mulher que exige atendimento preferencial porque carrega nos braços uma boneca, mas a vê como um bebê? Qual o papel do Estado diante de pedidos de atendimento pediátrico para bonecos? E mais: como os profissionais da saúde mental devem atuar quando esse comportamento representa uma estratégia de enfrentamento ou, inversamente, um sintoma grave de dissociação?

A ausência de diretrizes públicas claras sobre o tema faz com que cada caso seja tratado de maneira isolada, muitas vezes com improviso, embaraço e falta de preparo técnico. Profissionais de UBSs, hospitais e órgãos sociais relatam dificuldades em lidar com o fenômeno, sobretudo diante da exigência de respeito a direitos imaginários da boneca, como se esta fosse um ser humano. A falta de preparo pode gerar constrangimento tanto para a equipe quanto para a usuária, cuja fragilidade emocional frequentemente requer acolhimento, e não apenas correção.

É necessário sublinhar que nem todas as pessoas que possuem bebês reborn enfrentam patologias. Para algumas, trata-se de um hobby, um objeto de coleção ou uma expressão artística. O problema emerge quando o apego assume contornos patológicos, impedindo a interação com o real ou substituindo vínculos humanos. A linha entre expressão emocional legítima e sofrimento mental grave é tênue e deve ser avaliada à luz da história de vida, do contexto psicológico e da funcionalidade social de cada indivíduo.

Nesse sentido, o papel da avaliação profissional é insubstituível. Apenas psicólogos e psiquiatras podem identificar se o vínculo com um reborn configura uma fase de elaboração emocional, uma manifestação artística ou um sintoma de desequilíbrio psíquico. Quando há sofrimento, rigidez comportamental, isolamento ou dependência extrema do objeto simbólico, a intervenção clínica torna-se necessária e urgente.

O fenômeno das mães reborn não pode ser reduzido ao escárnio, à curiosidade mórbida ou ao desprezo institucional. É preciso enfrentá-lo com profundidade, ética e sensibilidade. Trata-se de um fenômeno do nosso tempo, fruto das novas formas de sofrimento emocional, da fragmentação dos vínculos afetivos e da solidão em larga escala. A maternidade simbólica de um reborn pode ser tanto um pedido de ajuda silencioso quanto uma tentativa legítima de ressignificar traumas profundos.

A sociedade precisa se equipar ética, institucional e emocionalmente para compreender e acolher essas expressões, sem infantilizar o sofrimento ou patologizar o que é apenas diferente. A clínica, por sua vez, deve estar preparada para distinguir entre o uso simbólico saudável e a manifestação de um transtorno mental. O Estado deve criar protocolos claros para situações-limite que envolvam reborns em serviços públicos, garantindo o respeito à dignidade humana sem comprometer a racionalidade institucional.

Em última instância, os bebês reborn revelam menos sobre o mundo das bonecas e mais sobre a condição emocional de quem os adota. O que a sociedade faz com isso acolhe, exclui ou ridiculariza diz muito mais sobre nós do que sobre elas.

#SaudeMental #Psicologia #BebeReborn #TranstornosMentais #Ansiedade #Depressao #Borderline #TranstornosDissociativos #TranstornoDeApego #InclusaoSocial #ServicosDeSaude #ComportamentoHumano

Suas preferências de cookies

Usamos cookies para otimizar nosso site e coletar estatísticas de uso.