O choque entre o presidente Jair Bolsonaro e governadores e prefeitos sobre as medidas de combate à pandemia de covid-19 se acentua enquanto o país bate recordes de mortes diárias e de ocupação de UTIs, com perspectiva de piora nas próximas semanas. Além de discordância sobre normas que restringem a movimentação de pessoas, o embate se dá sobre iniciativas para que os governos locais possam comprar vacinas diretamente dos produtores.
No nível federal, Bolsonaro insiste em uma postura contrária ao isolamento social e negacionista em relação à gravidade da pandemia. Na quinta-feira, um dia após o país bater seu recorde de mortes diárias, com 1.910 óbitos, o presidente disse que fechar o comércio seria “frescura”. “Chega de frescura, de mimimi, vamos ficar chorando até quando?”, afirmou.
Na sexta-feira, o presidente anunciou que havia pedido a auxiliares que preparassem um projeto de lei para ampliar a lista de atividades essenciais que poderiam seguir abertas durante as restrições aplicadas por municípios e estados. “Atividade essencial é toda aquela necessária para o chefe de família levar o pão para casa”, afirmou Bolsonaro.
O presidente também cogita fazer um pronunciamento em rede nacional de rádio e televisão para, entre outros pontos, criticar os prefeitos e governadores que restringiram a circulação de pessoas. O discurso seria transmitido inicialmente na terça-feira, foi postergado para quarta-feira e, depois, adiado novamente por sugestão de seus assessores próximos.
Federalismo de confronto
A estratégia de Bolsonaro de confrontar os prefeitos e governadores é vista como um cálculo político para se isentar da responsabilidade pela gestão da pandemia, e ameaça desestruturar o sistema federativo brasileiro, que deveria se basear na coordenação entre os diferentes níveis de governo.
Já em março de 2020, no início da pandemia, quando o Brasil se preparava para a primeira onda da covid-19 e alguns prefeitos e governadores anunciavam medidas restritivas, Bolsonaro editou uma medida provisória concentrando no governo federal o poder de determinar as regras sobre a movimentação de pessoas.
A iniciativa do presidente não prosperou. Em abril, o Supremo Tribunal Federal derrubou a medida e autorizou governadores e prefeitos a regulamentarem o tema, em decisão recebida de forma indignada por Bolsonaro. Em maio, o presidente editou um decreto incluindo salões de beleza, barbearias e academias no rol de serviços essenciais, mas foi ignorado por parte dos estados e municípios.
O comportamento do governo federal como um todo, porém, tem uma lógica dúbia. Ao mesmo tempo em que Bolsonaro questiona a eficácia dos imunizantes e critica as medidas de restrição, para mobilizar sua base de apoiadores, o Ministério da Saúde faz divulgações pontuais de que vai comprar mais vacinas, como a indiana Covaxin ou a da Pfizer/Biontech. Os anúncios e estimativas da pasta, contudo, costumam ser inflados e os acordos ainda dependem de outros passos para se efetivarem. A Covaxin, por exemplo, ainda não teve aval da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e o contrato com a Pfizer ainda não foi fechado.
Reação dos estados e municípios
As críticas do presidente às medidas de isolamento social têm efeito negativo na eficácia das decisões de prefeitos e governadores, pois confundem a população e quebram a unidade necessária para o sucesso das regras de isolamento. Mas os governos locais já estão respaldados pela decisão do Supremo para seguir com essas medidas.
O que preocupa os governadores neste momento é a compra de vacinas, que está centralizada no Ministério da Saúde e tem um fornecimento lento, restrito a poucos fornecedores e inconstante. Na quinta-feira, 14 governadores enviaram uma carta a Bolsonaro pedindo providências para aquisição de mais doses. No texto, eles argumentam estarem “no limite de suas forças e possibilidades” e que “nas próximas semanas, talvez meses, a pandemia seguirá ceifando vidas, ameaçando, desafiando e entristecendo todos nós”.
Alguns líderes estaduais se preparam para buscar fontes alternativas. Um deles é o governador de São Paulo, João Doria, que já impôs uma derrota ao presidente ao trazer a Coronavac ao país por meio de uma parceria com o Instituto Butantan. Bolsonaro inicialmente havia dito que não compraria o imunizante, mas depois cedeu e o Ministério da Saúde adquiriu toda a produção da vacina pelo Butantan. Na terça-feira (02/03), em reunião virtual com 617 prefeitos do estado de São Paulo, Doria prometeu ir além da Coronavac e comprar 20 milhões de doses da vacina da Pfizer/Biontech e já aprovada pela Anvisa, e outras 20 milhões de doses do imunizante russo Sputnik V, ainda não liberado pela agência, para serem aplicadas em moradores de São Paulo.
Outros governadores também negociam a compra direta de vacinas. No final de fevereiro, a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul aprovou o remanejamento de verbas para comprar vacinas e o governo local negocia a compra de doses da Pfizer e da Sputnik V. Há iniciativas semelhantes no Espírito Santo e em Santa Catarina, entre outros estados.
O Consórcio Nordeste, composto por nove governadores da região, tem um pré-contrato para comprar 50 milhões de doses da Sputnik V, e entrou com ação no Supremo para poder adquirir e aplicar o imunizante sem a necessidade de aprovação da Anvisa, ainda não julgada pela Corte.
Na sexta-feira, governadores do Consórcio da Amazônia, composto por nove estados, reuniram-se com o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Todd Chapman, para pedir ajuda aos norte-americanos para viabilizar a compra de 10 milhões de doses de vacinas para os moradores da região.
Os municípios têm menos capacidade financeira para negociar a aquisição de imunizantes com os laboratórios, mas também entraram no circuito. A Frente Nacional de Prefeitos lidera um consórcio de cidades para comprar vacinas, que já tem mais de 100 municípios participantes. E a Confederação Nacional dos Municípios divulgou nota na quinta-feira na qual defende que, na ausência de liderança do governo federal, estados e municípios passem a comprar vacinas.