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Mato Grosso do Sul, 24 de abril de 2024
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Interiorização é esperança para mais de 50 mil venezuelanos no Brasil

Venezuelanos contemplados pela Operação Acolhida embarcan - Acnur / Divulgação
Venezuelanos contemplados pela Operação Acolhida embarcan - Acnur / Divulgação

Vender todas as suas coisas e deixar o país foi a reação da venezuelana Keila Ruiz Yepez ao se ver em meio a uma crise social e humanitária. Ela cruzou a fronteira com o Brasil, alcançando o estado de Roraima em agosto de 2018. Saiu de um extremo do país para outro e atualmente, aos 45 anos, vive com o marido e dois filhos em Esteio, no interior do Rio Grande do Sul (RS).

“Somos da capital Caracas, mas vivíamos na Ilha de Margarita. E não tinha comida. O abastecimento dependia de navios e também havia falta de gasolina. Tínhamos dificuldades de acesso ao trabalho e à escola. Quando chegamos em Esteio foi muito emocionante. As pessoas nos receberam com um carinho que não consigo explicar. Meus filhos começaram a estudar, conseguimos trabalho. Iniciamos uma nova vida”, lembra. A cidade também se preparou para receber um contingente de venezuelanos e integrá-los: a prefeitura de Esteio determinou o ensino obrigatório da língua espanhola nas escolas municipais.

Hoje, o município que tem cerca de 90 mil habitantes abriga 416 venezuelanos. A trajetória de cada um deles guarda semelhanças, como muitas outras envolvendo o recomeço em solo brasileiro.

Na semana passada, o Ministério da Cidadania realizou uma cerimônia para celebrar a marca de 50 mil venezuelanos interiorizados por meio da Operação Acolhida, iniciativa que envolve uma rede de organizações sob a liderança da pasta. Um estudo lançado pelo Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) nesta quinta-feira (29) traduz em números histórias de esperança que vêm sendo construídas por essa população.

Realizado em parceria com a organização humanitária Aldeias Infantil SOS Brasil, o levantamento feito com 198 entrevistados em nove municípios do Sul, Sudeste e Nordeste revelou que 51% deles têm acesso a curso de treinamento e qualificação profissional, 95% usaram o serviço de saúde do país e 93% afirmaram ser boa ou muito boa a relação com os brasileiros. Em 63% das famílias, os filhos estão matriculados na escola. Além disso, 98% têm acesso à energia elétrica, 99% acesso à água potável e 97% ao saneamento básico. A renda média  familiar mensal declarada foi de R$ 1.338,20.

O levantamento revela, segundo o Acnur, a capacidade de boa parte dos venezuelanos de superar as dificuldades que se somam ao deslocamento involuntário. “Ainda que a renda familiar tenha apresentado perdas devido à pandemia de covid-19, foi possível constatar a efetividade e sustentabilidade das ações que visam ao acesso à educação, saúde, infraestrutura do lar e geração de renda na modalidade institucional da interiorização”, registra o estudo.

Diante do acolhimento encontrado no Brasil, apenas 22% do entrevistados disseram que gostariam de voltar à Venezuela. Keila não está nesse grupo. “Quero ficar aqui. Me sinto em casa. Tenho acesso aos serviços básicos. Mas claro que eu sinto saudade. Quando escuto uma música, vejo uma notícia de lá, me parte o coração”, diz.

O movimento atípico na fronteira começou a chamar a atenção em 2017, culminando com uma série de problemas sociais no município de Pacaraima (RO), a 215 quilômetros da capital Boa Vista. No ano seguinte, o quadro se intensificou e, em 2019, o fluxo se manteve em patamar alto. Diante do cenário, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), órgão colegiado vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, reconheceu em 2019 a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela. A decisão influencia a análise dos pedidos de reconhecimento da condição de refugiado apresentados pelos venezuelanos.

De acordo com Paulo Sérgio de Almeida, oficial de meios de vida do Acnur, cerca de 500 pessoas ingressavam diariamente no país. “Nem todas ficavam no Brasil, há um fluxo de entrada e saída. Mas uma parte dessas pessoas acabava ficando”, afirma.

A Operação Acolhida surge em abril de 2018 como uma resposta emergencial humanitária do Estado brasileiro ao fluxo migratório decorrente da crise no país vizinho. A iniciativa, liderada pelo Ministério da Cidadania, conta com o suporte de uma rede de organizações da sociedade civil articuladas com o apoio do Acnur. Também busca envolver estados e municípios nesse acolhimento aos venezuelanos. O Exército brasileiro coordena a logística de deslocamento dos migrantes.

“Estimamos que cerca de 260 mil refugiados e migrantes venezuelanos vivem atualmente no Brasil. Isso equivale a dizer que um em cada cinco recebeu apoio da Operação Acolhida. A parceria assegura que os refugiados e migrantes venezuelanos encontrem no Brasil um horizonte de esperança”, disse o ministro da Cidadania, João Roma, durante o evento que celebrou a marca dos 50 mil interiorizados.

Vocação brasileira

Três pilares constituem a Operação Acolhida: o primeiro é o ordenamento de fronteira e documentação e o segundo envolve a garantia do acesso às necessidades básicas da população que está chegando, incluindo a oferta de acolhimento nos abrigos estabelecidos em Roraima. O terceiro pilar é a integração socioeconômica por meio da estratégia de interiorização.

A iniciativa reitera uma vocação do país, consolidada historicamente, para lidar de maneira positiva com migrantes e refugiados. O Brasil é, por exemplo, considerado pelo Acnur uma referência internacional no tratamento dado aos sírios que fugiram do conflito armado que assola o país do Oriente Médio há dez anos. A legislação garante aos refugiados os mesmos direitos que qualquer cidadão brasileiro, como acesso a serviços de saúde e de educação.

O caso dos venezuelanos é mais desafiador devido ao volume que entra no país. Desde o início da crise humanitária em 2017, o Conare já concedeu refúgio a 46 mil venezuelanos. De todos os refugiados em solo brasileiro, cerca de 80% vieram da Venezuela. Na América Latina, o Brasil é a nação que reconheceu o maior número de refugiados provenientes do país vizinho.

Brasileiros e venezuelanos não têm muita dificuldade para atravessar a fronteira que os separa. Em decorrência de um acordo bilateral, turistas não precisam de vistos e podem visitar o país vizinho por 90 dias. Para lidar com o fluxo intenso a partir de 2017, um posto da Operação Acolhida foi instalado em Pacaraima, próximo à fronteira. No local, é feito um primeiro processo de identificação, triagem e orientação sobre documentação para ter acesso à estratégia de interiorização.

Duas possibilidades são indicadas aos venezuelanos para regularizar a situação de permanência. A primeira é solicitar o reconhecimento da condição de refugiado. A outra é pedir um visto de residente temporário, alternativa oferecida pelo governo brasileiro que permite ficar no país inicialmente por dois anos. Posteriormente, é possível requerer uma conversão para um visto de longa duração. Tanto os solicitantes de refúgio e refugiados já reconhecidos, quanto os residentes temporários têm acesso pleno a serviços públicos. Estão liberados para buscar vagas no mercado de trabalho e podem obter seu Cadastro de Pessoa Física (CPF) e a Carteira de Trabalho.

“Na região da fronteira, não há possibilidades de inserção socioeconômica de toda a população que chega. Então, uma parte busca outras regiões do Brasil. A estratégia de interiorização apoia as pessoas que queiram se deslocar para outras cidades brasileiras, onde há melhores perspectivas de inserção socioeconômica”, explica Paulo Sérgio de Almeida, oficial do Acnur.

Criada pela Organização das Nações Unidas (ONU) para assegurar e proteger os direitos das pessoas em situação de refúgio em todo o mundo, o Acnur se mantém exclusivamente com doações que podem ser feitas, por meio de seu site. No Brasil, ele tem atuação direta em Roraima, justamente devido às preocupações com a situação na fronteira com a Venezuela. No resto do país, a atuação é indireta, financiando organizações sociais e entidades do terceiro setor. Elas desenvolvem ações em frentes variadas, que incluem cursos de português, capacitação profissional, encaminhamento de crianças para a escola, concessão de auxílios sociais e financeiros, atendimento psicossocial, entre outras.

Um depoimento gravado pelo venezuelano Alberto José Figueredo Lugo, exibido na cerimônia organizada para celebrar os 50 mil interiorizados, revela a importância dessa rede de organizações sociais articuladas no Brasil. Ele destaca o acolhimento obtido em Boa Vista por meio da Cáritas Brasileira, entidade vinculada à Igreja Católica. Há três anos no país, Lugo se sente realizado. “Representou muito para mim. Mudança de vida, sonhos, metas. Consegui entrar no mercado de trabalho. Meu sonho sempre foi ser empreendedor e ter meu próprio negócio. Hoje tenho uma hamburgueria na cidade de São Sebastião. E quero dar minha contribuição a esse país que me acolheu”, disse.

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