A música brasileira perdeu nesta quinta-feira, 1º de maio, uma de suas vozes mais marcantes. Morreu, aos 84 anos, a cantora Nana Caymmi, após quase nove meses de internação na clínica São José, em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro. A informação foi confirmada por familiares. A artista vinha enfrentando um quadro delicado de saúde desde agosto do ano passado, quando deu entrada no hospital com arritmia cardíaca. Passou por um cateterismo, uma traqueostomia e enfrentava complicações recorrentes. Segundo o irmão, o também músico Danilo Caymmi, a irmã sofreu uma overdose de opioides. A causa exata da morte, porém, ainda não foi divulgada oficialmente.
A despedida de Nana Caymmi não é apenas a perda de uma cantora. É o fim de uma era, de uma linhagem musical poderosa e única, iniciada por seu pai, o baiano Dorival Caymmi. Nascida Dinahir Tostes Caymmi, em 29 de abril de 1941, no Rio de Janeiro, ela cresceu em um ambiente onde a música era mais que ofício: era essência. Nana era a primogênita de Dorival com Stella Maris, e foi seguida pelos irmãos Dori e Danilo, que também seguiram carreira musical. Desde cedo, a música fazia parte de sua vida, mas ela mesma não tinha grandes pretensões de seguir a profissão. Foi quase por acaso que tudo começou.
Em 1960, ainda adolescente, Nana gravou pela primeira vez. Foi no disco do próprio pai, na canção “Acalanto”, feita por Dorival especialmente para ela quando criança. A música se tornou uma das mais conhecidas do cancioneiro infantil brasileiro. Sua mãe, que deveria cantar a faixa, ficou nervosa no estúdio. Foi aí que Dorival puxou Nana pelo braço e a colocou diante do microfone. Segundo ela, foi ali que tudo começou. A confiança do pai foi decisiva para o futuro.
Ainda naquele ano, Nana lançou seu primeiro compacto solo, com duas faixas. Pouco depois, assumia um programa musical na TV Tupi, ao lado do irmão Dori. Mas o rumo da vida deu uma guinada em 1961, quando ela largou a carreira em ascensão e se mudou para a Venezuela, após se casar com o médico Gilberto José Aponte Paoli. Lá, nasceram suas duas filhas. Mesmo longe do Brasil, a música nunca deixou de pulsar em sua vida. E foi justamente essa saudade da arte e das raízes que a trouxe de volta ao país em 1966, já separada, grávida de seu terceiro filho, e determinada a retomar seu lugar.
No mesmo ano, venceu o primeiro Festival Internacional da Canção com a música “Saveiros”, composta por Dori Caymmi e Nelson Motta. Um marco que a reposicionou no cenário musical brasileiro. No ano seguinte, casou-se com Gilberto Gil, com quem compôs e gravou canções importantes. Participou de festivais, gravou com os Mutantes, se envolveu com o movimento tropicalista ainda que, segundo ela mesma, não entendesse muito bem o que era aquilo. Nana falava o que pensava, sem rodeios. Nunca teve medo de contrariar expectativas, fosse em entrevistas ou nas escolhas artísticas.
Nos anos 1970, começou a construir o que seria uma das fases mais consistentes de sua carreira. Em 1975, lançou o álbum “Nana Caymmi”, que a projetou de vez. Nele, interpretava faixas do Clube da Esquina, como “Ponta de areia”, de Milton Nascimento, e “Beijo partido”, de Toninho Horta. Também regravava de forma definitiva clássicos do pai. Era a prova de que Nana transitava com profundidade entre o antigo e o novo, o popular e o sofisticado. A força da sua interpretação fazia qualquer letra soar como se tivesse sido vivida por ela.
Ao longo das décadas seguintes, sua trajetória foi marcada por parcerias de peso com compositores e músicos que moldaram a MPB. Ivan Lins, João Donato, Gonzaguinha, Sueli Costa, João Bosco, Cláudio Nucci — com quem foi casada —, entre tantos outros. Gravou discos que se tornaram referência. Um deles foi “Voz e suor”, de 1983, que ela considerava um de seus trabalhos mais importantes. Em 1998, sua interpretação da canção “Resposta ao tempo”, parceria de Cristóvão Bastos com Aldir Blanc, se tornou abertura da minissérie “Hilda Furacão” e atravessou gerações.
Nana Caymmi nunca foi uma cantora de concessões. Não seguia tendências. Nunca quis agradar o mercado ou a crítica. Quis, sim, ser verdadeira. Pagou o preço por isso em alguns momentos da carreira, mas colheu respeito e admiração por toda a vida. Era intensa, honesta, sensível, e sabia transformar essas qualidades em música.
Em entrevistas, se mostrava espirituosa, mordaz e, ao mesmo tempo, profundamente humana. Em 1973, dizia: “Venho de uma família de dois compositores e dois intérpretes que muito me orgulham, onde a música é mais nossa vida que nosso ganha-pão”. Era a síntese perfeita de quem era Nana: alguém que vivia para cantar, mas cantava porque sentia, porque precisava, porque era a sua verdade.
Neste 29 de abril, ela completou 84 anos. Passou o aniversário internada, recebendo cuidados médicos e o carinho de quem a acompanhava à distância. Dois dias depois, partiu. A notícia chegou como um soco no peito de quem cresceu ouvindo sua voz, de quem se emocionou com suas interpretações, de quem reconhecia na sua arte um pedaço da alma brasileira.
Com sua morte, encerra-se um dos capítulos mais autênticos da música popular do Brasil. Mas sua voz segue viva. Em cada nota gravada, em cada melodia reinterpretada, em cada coração tocado por sua arte. Nana Caymmi não era só uma cantora. Era uma intérprete rara, daquelas que surgem de tempos em tempos para nos lembrar do poder da música de verdade.
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