A paraense Maria Elias, 43 anos, e a maranhense Luza Maria, 49, se prostituem há mais de duas décadas e dependem desse trabalho para se sustentarem. Com a pandemia do coronavírus, elas e outras trabalhadoras sexuais viram o número de clientes diminuir e o dinheiro sumir. Sem outra fonte de renda e sem poder fazer isolamento social, tiveram que voltar às ruas mesmo sabendo do alto risco de se infectarem.
Presidente do Coletivo Coisa de Puta +, que atua pelos direitos das trabalhadoras sexuais, Maria Elias conta que, em um ano, perdeu dez amigas de trabalho para a covid-19. A solução encontrada por ela, Luza e outras colegas para trabalhar com menos riscos de contrair o coronavírus, já que o distanciamento social é impossível no sexo, foi criar uma espécie de protocolo de segurança.
Ao kit de cuidados que carregam para evitar as ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), com camisinha e gel lubrificante, acrescentaram a máscara e passaram a sair de casa com até cinco peças de roupas para trocar após os programas. Além disso, estabeleceram regras para a relação sexual: os clientes não podem beijá-las e elas precisam ficar de costas durante o ato. Quem se recusa a seguir o protocolo é posto para fora do quarto, garantem elas.
“As pessoas da saúde são da linha de frente na batalha contra a covid-19. Nós somos da linha frente, de costas e de lado… Então pensamos em atuar apenas de costas, sem o rosto colado. Fizemos ainda um material sobre protocolo de higienização, incentivando as colegas a tomarem banhos com mais frequência e a levarem trocas de roupa e de peças íntimas. Nos viramos de cabeça para baixo para garantir essa renda”, diz Maria Elias, que vive em Belém (PA).
O novo protocolo, conta, fez seu grupo ficar famoso na região onde atua em Belém (PA), onde ela e as colegas passaram a ser chamadas de “as garotas que trabalham de costas”. Mãe de dois filhos e avó de dois netos, ela viu a renda mensal de R$ 4.000 cair pela metade desde o início da pandemia. Por meio do Coletivo Coisa de Puta +, ela articulou com outras colegas estratégias para poderem trabalhar com mais segurança na pandemia.
A dificuldade maior, segundo ela, é convencer os clientes a seguirem o protocolo. “Antes, era difícil negociar o uso de preservativo, agora essa dificuldade dobrou ao tentar fazer o cliente usar máscara e não nos beijar”, fala. “Já aconteceu de não aceitarem e tivemos que chamar um segurança do local onde estávamos trabalhando ou sair do quarto e desistir do programa. E fazendo isso ficamos só com a metade do pouco dinheiro que ganhamos hoje. Isso é rotineiro, infelizmente.”
“Sexo de costas é melhor do que nada”
Luza Maria Silva trabalha há 33 anos com sexo. É assim que ela sustenta quatro filhos e quatro netos. Antes da pandemia, conseguia fechar o mês com dois salários mínimos (R$ 2.200). Agora, para conseguir a metade dessa quantia, também adotou o sexo de costas para evitar a covid-19. Moradora de João Pessoa (PB), ela conta que enfrenta a mesma resistência que as colegas de Belém (PA) por parte dos clientes que não querem usar a máscara.
Muitas colegas pegaram a covid-19 e algumas ficaram com sequela, andam com falta de ar até hoje. Então os cuidados redobraram. Se já tomávamos banho antes e depois, e obrigávamos também os clientes a fazerem o mesmo, agora aumentamos a quantidade. Os cliente que gostam de ficar mais tempo acham ruim tanto protocolo, mas sabemos que é necessário, diz Luza.
Especialista em prevenção e tratamento de HIV e ISTs pela USP (Universidade de São Paulo), o infectologista Rico Vasconcelos lembra que a covid-19 é transmitida por gotículas respiratórias e que, numa relação sexual, é muito difícil não haver essa troca. Mas falar para não fazer sexo, na sua avaliação, não reduz o dano.
“Enquanto só havia a estratégia de prevenção comportamental como usar a camisinha, o controle da disseminação do HIV no mundo foi muito ruim. Só quando começou a ter estratégia biomédica de prevenção, com remédios e PrEp (Profilaxia Pré-Exposição), o impacto foi enorme. Em tempos de covid-19, temos que recomendar o que temos na mão”, fala.
“Procure não beijar, se possível, usar máscara durante a relação é melhor que não usar e fazer sexo em posições que não tenham contato próximo de vias aéreas é melhor. Não é uma garantia de que a pessoa estará 100% protegida, mas não podemos fazer o que fizemos no exemplo do HIV, quando a gente achou que ia ser possível dizer para as pessoas não transarem. Isso é impossível”, diz o infectologista.
Com pandemia, cliente quer pagar R$ 5 por programa
Mesmo cientes de todos os riscos que essas mulheres estão passando, e por causa dos protocolos de segurança adotados por elas, os clientes querem pagar menos pelo programa. Universa recebeu relatos de trabalhadoras de Guaíba (RS) que estão aceitando trabalhar por R$ 5 ou R$ 10 para comer. “Ou é isso ou passa fome”, conta uma delas, que não quis se identificar.
Para ajudar essas essas mulheres, o Fundo Positivo (entidade sem fins lucrativos) criou uma verba emergencial para projetos voltados às trabalhadoras sexuais entre eles, o liderado por Maria Elias. Criada há sete anos pelo administrador de empresas Harley Henriques, a organização levanta recursos e os repassa, através de editais públicos, para ONGs que atuam com saúde sexual e reprodutiva e diversidade.
Com o avanço da pandemia, explica, as doações caíram muito. Ele então criou um fundo emergencial para conseguir ajudá-las a comprar materiais de higiene e EPIs (equipamento de proteção individual). O empresário arrecadou R$ 1 milhão, pra distribuir a 20 ONGs num período de seis a oito meses. “Houve um impacto grande nas relações com a pandemia, e as trabalhadoras tiveram que repensar sua forma de atuar, criando novos códigos e técnicas que oferecem menos risco. A gente apoia as associações também para disseminar essas informações, além de ajudar no sustendo básico”, diz Henriques.
Luza, que é presidente da Associação das Prostitutas da Paraíba (APROS-PB), complementa a renda com esse repasse. “Estou me virando com essa ajuda de custo, senão não ia ter o que comer.”